21/07/2010

A Necessidade de Inversão do Ônus da Prova em Condutas Discriminatórias na Admissão

É direito fundamental de todo indivíduo não ser discriminado e, como corolário deste direito, ao cidadão trabalhador é garantida a igualdade de oportunidades e tratamento em matéria de acesso à relação de emprego.

O princípio da livre iniciativa e o direito de propriedade, ínsitos aos tomadores de serviços por meio de relações de emprego, permitem que o empregador possa verificar tudo aquilo que venha a interferir objetivamente no trabalho a ser realizado pela pessoa contratada. No entanto, o sistema jurídico pátrio não dá carta branca para a liberdade de escolha ao contratar, de modo que, ao poder diretivo do empregador de admitir quem deseja, para a vaga oferecida, são impostos limites pelo nosso ordenamento jurídico.

O ordenamento jurídico pátrio tem por fundamento, do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB) e os valores sociais do trabalho (art. 1º, IV). Além disto, são objetivos da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III), bem como promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV).

Esses objetivos e fundamentos, aliados à igualdade assegurada pelo caput do art. 5º, também da CRFB, garantem a todos, indistintamente, o direito à não discriminação, como forma de enaltecer o valor maior de cada ser humano: a sua dignidade.

Em matéria de trabalho, o nosso ordenamento também prevê expressamente a vedação desta prática odiosa, ex vi, os incisos XXX, XXXI e XXXII, do art. 7º da CRFB, as Convenções 100 e 111 da Organização Internacional do Trabalho, ambas ratificadas pelo Brasil, e da Lei 9029/95.

Diante desses limites impostos pelo ordenamento, aquele que, ao contratar ou deixar de contratar, utilizar-se de critérios discriminatórios, fundados em fatores de discrímen proibidos tais como raça, cor, etnia, gênero, aparência, idade, orientação sexual, exercício de direito de ação, estado de saúde, religião, opinião ideológica ou política, situação familiar e outros, estará, na verdade, praticando abuso no exercício do direito de livremente escolher seus empregados (art.187 do Código Civil), com burla ao princípio da boa-fé objetiva, o qual sempre se espera encontrar na celebração de todo e qualquer negócio jurídico (art. 422 do Código Civil).
Expressamente, o art. 1º da Lei 9029/95 veda a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de emprego. Desta feita, práticas que discriminam determinados trabalhadores desde a divulgação de anúncios de vagas em veículos de comunicação, que prezam pela "boa aparência", que ferem a autodeterminação informativa de candidatos a emprego (tais como a exigência de apresentação de certidões negativas, de antecedentes criminais, de cartas fianças, de atestados de esterilidade, de exames toxicológicos; as pesquisas em órgãos de consulta creditícia; as análises da codificação genética para avaliar a predisposição ao desenvolvimento de vícios ou problemas de saúde), ou que alijam do mercado de trabalho mulheres, idosos, negros, pessoas com deficiência, doentes, homossexuais, egressos do sistema prisional e outros, são consideradas nulas de pleno direito e, portanto, nos termos dos arts. 8º e 9 º da Consolidação das Leis do Trabalho e arts. 187 e 927 do Código Civil, merecem reparação.

A constatação da necessidade de reparação das condutas ilícitas perpetradas pelo empregador por ocasião da fase pré-contratual, em que se verifica a prática de discriminação, é inequívoca, porque foram violados os deveres de probidade e boa-fé, nos termos do art. 422 do Código Civil. A dificuldade, todavia, reside na circunstância de que a prova da prática discriminatória é ônus do qual não se desincumbe o trabalhador vítima da exclusão, tendo em vista que esta, quando ocorre na admissão, é, corriqueiramente, indireta, nem sempre motivada pelo preconceito, ou quando o é, ocorre quase sempre de forma velada.

O empregador, quando deixa de contratar, simplesmente silencia sobre os motivos que o levaram a optar por um candidato e não por outro. Ao candidato, vítima da discriminação, resta apenas a violação ao seu direito fundamental de acesso ao trabalho, isto porque o fardo que lhe é imposto pela lógica do dobrado composto pelos art. 818 da CLT e art. 333 do CPC é pesado demais e acaba por lhe negar também, além do emprego, o acesso a uma tutela jurisdicional eficaz e justa.

Como se vê, a abordagem da questão do ônus da prova da discriminação, mesmo com seus contornos processuais, é indissociável de qualquer discussão que se busque ser eficaz para o tema, tendo em vista que é justamente nos meandros do processo que se alcançará a resposta efetiva que o caso requer.

É imperioso, e já vai muito tarde, que se mude o modo de pensar o processo, de forma que este seja visto, de fato, como instrumento a tutelar o direito material, de maneira eficaz e justa, capaz de impedir que se reproduzam, sob a chancela do Estado Juiz, as mesmas desigualdades que se verificam no plano dos fatos.

Ora, é patente a impossibilidade de um candidato a uma vaga de emprego provar o motivo pelo qual a sua não admissão padece do vício da discriminação, ainda que tenha suspeitas, tendo em vista que o empregador é acobertado pela potestas de não externar as razões pelas quais não o contratou. Deste modo, não é razoável que, no âmbito processual, este tratamento desigual se perpetue pela adoção da regra de julgamento dos arts. 818 da CLT e 333 do CPC, pois é inviável, na prática, que o trabalhador vítima da exclusão prove as alegações que faz, já que ao empregador bastará negar em silêncio.

Por isso, a melhor leitura que se faz do princípio do devido processo legal, por meio de uma filtragem dos valores constitucionais, ao lhe conferir nuance substancial, induz o intérprete no sentido de que é incompatível com o processo constitucional a solução meramente formal da demanda, sendo certo que, se de antemão já se sabe que, em matéria de discriminação, a prova cabal e direta é praticamente impossível diante dos simulacros adotados, outra lógica probatória deve ser pensada.

Assim é que, à luz do devido processo legal substancial, para que o processo do trabalho dê a quem tem direito tudo aquilo e exatamente aquilo a que tem direito, em matéria de discriminação, faz-se necessária a adoção da técnica de inversão do ônus da prova, amplamente difundida na área comum, sob pena de, não o fazendo, o magistrado pecar pela parcialidade, por deixar recair sobre quem não tem aptidão o ônus de produzir a prova em juízo.

Logo, para enaltecer o princípio da aptidão probatória, corolário que é do princípio do devido processo legal substancial, ao empregador deve recair o ônus de provar os motivos pelos quais a pessoa que alega ter sido discriminada na admissão não obteve a vaga oferecida.

Tal ônus não causa qualquer transtorno ou desconforto àquele tomador de serviços que legitimamente aferiu a qualificação e capacitação de um candidato à necessidade do serviço. Na verdade, este procedimento, ao ser corretamente utilizado, respeitando-se os princípios do contraditório e da ampla defesa do réu, beneficia o bom empregador, que passará a investigar sem receios, por meio da pesquisa pré-contratual, os dados lícitos necessários a compatibilizar empregado e posto de trabalho. Assim, após aferir os motivos lícitos que, diretamente relacionados ao trabalho a ser realizado, revelaram que outra pessoa representava melhor os requisitos do posto a ser ocupado, que não o reclamante, bastará ao empregador externá-los, agora, em juízo.

Em matéria de discriminação, a adoção da lógica do dobrado composto pelos art. 818 da CLT e art. 333 do CPC, supostamente neutra e imparcial, é insuficiente e ineficaz, porque é incapaz de tratar os litigantes, no processo, com igualdade substancial, porque promove a sensação de injustiça e desamparo da vítima perante o Poder Judiciário ao conduzir a soluções meramente formais da demanda, porque não revela a verdade real dos fatos, porque impregna todos os tomadores de serviços da pecha de discriminadores, porque incentiva a conduta aos maus empregadores, enfim, porque não atende aos anseios do processo sob o prisma constitucional.

Diante do exposto, vislumbra-se que a adoção da técnica da inversão do ônus da prova, ao lado de outras soluções pensadas para reduzir a dificuldade de se provar a ocorrência da discriminação na admissão, tais como a adoção da estatística como meio de prova e a relevância conferida à prova indiciária, são medidas imperiosas para se reduzir este ilícito trabalhista que fere tão de perto a dignidade da pessoa humana trabalhadora.

BUARQUE, Carolina De Prá Camporez. A necessidade de inversão do ônus da prova em condutas discriminatórias na admissão. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2550, 25 jun. 2010. Disponível em: . Acesso em: 21 jul. 2010

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